Lar doce Lar
Entrei, estava escuro, as paredes eram feitas de papel, papelão, cartão, madeira em contraplacado. Não importa, eram finas e conseguia sentir o vento que insistia em transpor a frágil barreira que me separava da rua. A chuva batia à porta num chicotear firme e constante.
No alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas, espreitava um feixe de Luz, um fio de navalha cortante no meio da escuridão. Fiquei muito tempo naquela primeira sala, a estrutura balançava com as rajadas que teimavam em não acalmar e uma gota delicada caía a cada dois segundos, uma gota pingada de luz que mergulhava na escuridão, e se extinguia ao tocar no chão inundado de chuva, lágrimas, gotas luminosas suicidas, lamentos, mar, rio...
Passei para a segunda sala, foi rápido, tinha os pés molhados, sentia-me terrivelmente só, é perigoso ficar infinitamente a olhar para uma gota triste.
Na terceira sala esperava por mim uma mulher, abriu a porta e convidou-me a entrar.
Sentei-me numa cadeira. Ela sentou-se na outra. Ela deu-me uma carta. Ofereceu-me café e uma fatia de bolo. Li a carta. Ela disse-me que não gostava de bolo. Cortou duas fatias. Eu pensei que não deveria beber café. Mas bebi. A carta. Bonita, pensei, quero ficar mais tempo a ler, não posso, não devo, o que é que esta mulher quer? Olhou para mim com um sorriso, podia ficar calada. Não sabia se conseguia. Falei. Ela fumou um cigarro. Comemos o bolo.
Mais uma carta. “Tudo isto leva muito tempo” e ao mesmo tempo, tempo nenhum.
A carta. A segunda carta. É um guião, uma narração da acção, uma lembrança de que tudo aquilo não passava de peça de teatro. Não confio nas palavras. Continuei a olhar para a mulher à minha frente. Falo-lhe da pinga que se solta do alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas. Falo-lhe da casa que parece de papel. Sinto-me terrivelmente só, mas não digo. Apetece-me chorar, mas reprimo a lágrima. Não quero sair, aquela cadeira aqueceu a minha solidão.
- Posso apagar a luz?
Ela levanta-se e ajoelha-se à minha frente.
- Posso tirar-te o sapato?
“Ela baixa-se e com a mão rodeia-lhe o tornozelo. Tira-lhe o sapato. Ela não está espantada. Cala-se. Sabendo no entanto que alguma coisa deveria dizer. Passam trinta segundos”
- Posso tirar-te a meia?
Estava ensopada com a chuva, lágrimas, gotas luminosas suicidas, lamentos, mar, rio...
O pé gelado. Ela poisa o meu pé em cima da coxa dela, quente e nua. Sinto calor, sabe bem, muito bem...
- Posso tirar-te o outro sapato?
“ Tira-lhe o outro sapato. Depois levanta os olhos para ela. Não tem medo.”
- Posso dar-te a mão?
“Ficam ambas sentadas muito tempo de mãos dadas entre a mesa e a cadeira.
Ambas têm consciência do ridículo da posição.
Mas estão sérias e não ousam dizer palavra ou talvez sim.
Na casa reina o silêncio.
A vida de cada uma projecta as suas sombras em tudo.
Elas não se escutam senão a elas próprias.
Estão de mãos dadas, silenciosas e atemorizadas.
Cada uma procura socorrer-se da outra.
Sabendo que se se largam estão perdidas.
E também se não se largam perdidas estão.
E nesse momento tudo parece tão simples.”
- Posso dar-te um beijo?
Digo que sim, sem pensar, um beijo. Ela levanta-se e com um sorriso cúmplice aproxima-se dos meus lábios, tocando-lhes num beijo silencioso.
- Posso dar-te um abraço?
Dá-me um abraço forte, terrivelmente forte, uma abraço de despedida, um abraço de força vencida.
- Posso abrir a luz?
Dá-me a terceira carta e diz – Adeus.
“Ela olha para as mãos e pensa. Existe um vento impetuosamente solto na noite da minha vida. E tu amiga desconhecida, nesse lugar, sentes o vento impetuoso solto na noite da tua vida?”
“Aqui, eu abro as portas, corro e vou em direcção ao mar.
E tu? Corres, de braços abertos em direcção a ti?”
“Havia uma casa, havia uma noite. Havia uma mão e outra mão. Havia um instante. Lembras-te?
Olha. Um minuto.
Não te esqueças.”
Saí com a carta amarrotada dentro do bolso das calças. O frio do chão perfurava-me a alma. A gota solta do alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas num chicotear firme e constante fundia-se com o bater do meu coração.
Terraço Lux, foi até 22 de Abril.
Mónica Calle, dramaturgia, Nadir Bonaccorso, arquitectura.“Um objecto, um interior, um percurso, fragmentos, um espectador e Mónica Calle.”
No alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas, espreitava um feixe de Luz, um fio de navalha cortante no meio da escuridão. Fiquei muito tempo naquela primeira sala, a estrutura balançava com as rajadas que teimavam em não acalmar e uma gota delicada caía a cada dois segundos, uma gota pingada de luz que mergulhava na escuridão, e se extinguia ao tocar no chão inundado de chuva, lágrimas, gotas luminosas suicidas, lamentos, mar, rio...
Passei para a segunda sala, foi rápido, tinha os pés molhados, sentia-me terrivelmente só, é perigoso ficar infinitamente a olhar para uma gota triste.
Na terceira sala esperava por mim uma mulher, abriu a porta e convidou-me a entrar.
Sentei-me numa cadeira. Ela sentou-se na outra. Ela deu-me uma carta. Ofereceu-me café e uma fatia de bolo. Li a carta. Ela disse-me que não gostava de bolo. Cortou duas fatias. Eu pensei que não deveria beber café. Mas bebi. A carta. Bonita, pensei, quero ficar mais tempo a ler, não posso, não devo, o que é que esta mulher quer? Olhou para mim com um sorriso, podia ficar calada. Não sabia se conseguia. Falei. Ela fumou um cigarro. Comemos o bolo.
Mais uma carta. “Tudo isto leva muito tempo” e ao mesmo tempo, tempo nenhum.
A carta. A segunda carta. É um guião, uma narração da acção, uma lembrança de que tudo aquilo não passava de peça de teatro. Não confio nas palavras. Continuei a olhar para a mulher à minha frente. Falo-lhe da pinga que se solta do alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas. Falo-lhe da casa que parece de papel. Sinto-me terrivelmente só, mas não digo. Apetece-me chorar, mas reprimo a lágrima. Não quero sair, aquela cadeira aqueceu a minha solidão.
- Posso apagar a luz?
Ela levanta-se e ajoelha-se à minha frente.
- Posso tirar-te o sapato?
“Ela baixa-se e com a mão rodeia-lhe o tornozelo. Tira-lhe o sapato. Ela não está espantada. Cala-se. Sabendo no entanto que alguma coisa deveria dizer. Passam trinta segundos”
- Posso tirar-te a meia?
Estava ensopada com a chuva, lágrimas, gotas luminosas suicidas, lamentos, mar, rio...
O pé gelado. Ela poisa o meu pé em cima da coxa dela, quente e nua. Sinto calor, sabe bem, muito bem...
- Posso tirar-te o outro sapato?
“ Tira-lhe o outro sapato. Depois levanta os olhos para ela. Não tem medo.”
- Posso dar-te a mão?
“Ficam ambas sentadas muito tempo de mãos dadas entre a mesa e a cadeira.
Ambas têm consciência do ridículo da posição.
Mas estão sérias e não ousam dizer palavra ou talvez sim.
Na casa reina o silêncio.
A vida de cada uma projecta as suas sombras em tudo.
Elas não se escutam senão a elas próprias.
Estão de mãos dadas, silenciosas e atemorizadas.
Cada uma procura socorrer-se da outra.
Sabendo que se se largam estão perdidas.
E também se não se largam perdidas estão.
E nesse momento tudo parece tão simples.”
- Posso dar-te um beijo?
Digo que sim, sem pensar, um beijo. Ela levanta-se e com um sorriso cúmplice aproxima-se dos meus lábios, tocando-lhes num beijo silencioso.
- Posso dar-te um abraço?
Dá-me um abraço forte, terrivelmente forte, uma abraço de despedida, um abraço de força vencida.
- Posso abrir a luz?
Dá-me a terceira carta e diz – Adeus.
“Ela olha para as mãos e pensa. Existe um vento impetuosamente solto na noite da minha vida. E tu amiga desconhecida, nesse lugar, sentes o vento impetuoso solto na noite da tua vida?”
“Aqui, eu abro as portas, corro e vou em direcção ao mar.
E tu? Corres, de braços abertos em direcção a ti?”
“Havia uma casa, havia uma noite. Havia uma mão e outra mão. Havia um instante. Lembras-te?
Olha. Um minuto.
Não te esqueças.”
Saí com a carta amarrotada dentro do bolso das calças. O frio do chão perfurava-me a alma. A gota solta do alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas num chicotear firme e constante fundia-se com o bater do meu coração.
Terraço Lux, foi até 22 de Abril.
Mónica Calle, dramaturgia, Nadir Bonaccorso, arquitectura.“Um objecto, um interior, um percurso, fragmentos, um espectador e Mónica Calle.”
6 Comments:
...e eu a pensar que tinhas sido tu a escrever :(
Podias ter sido, sabias?
Só não escrevi as cartas, entre ""...
Foi ela que as escreveu!
Que intensidade! Quem me dera ter ido também visitar a minha solidão...
Como é bom ler o que escreveste.
Sente-se...
ui...
I find some information here.
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