terça-feira, abril 25, 2006

Lar doce Lar

Entrei, estava escuro, as paredes eram feitas de papel, papelão, cartão, madeira em contraplacado. Não importa, eram finas e conseguia sentir o vento que insistia em transpor a frágil barreira que me separava da rua. A chuva batia à porta num chicotear firme e constante.

No alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas, espreitava um feixe de Luz, um fio de navalha cortante no meio da escuridão. Fiquei muito tempo naquela primeira sala, a estrutura balançava com as rajadas que teimavam em não acalmar e uma gota delicada caía a cada dois segundos, uma gota pingada de luz que mergulhava na escuridão, e se extinguia ao tocar no chão inundado de chuva, lágrimas, gotas luminosas suicidas, lamentos, mar, rio...

Passei para a segunda sala, foi rápido, tinha os pés molhados, sentia-me terrivelmente só, é perigoso ficar infinitamente a olhar para uma gota triste.

Na terceira sala esperava por mim uma mulher, abriu a porta e convidou-me a entrar.

Sentei-me numa cadeira. Ela sentou-se na outra. Ela deu-me uma carta. Ofereceu-me café e uma fatia de bolo. Li a carta. Ela disse-me que não gostava de bolo. Cortou duas fatias. Eu pensei que não deveria beber café. Mas bebi. A carta. Bonita, pensei, quero ficar mais tempo a ler, não posso, não devo, o que é que esta mulher quer? Olhou para mim com um sorriso, podia ficar calada. Não sabia se conseguia. Falei. Ela fumou um cigarro. Comemos o bolo.

Mais uma carta. “Tudo isto leva muito tempo” e ao mesmo tempo, tempo nenhum.
A carta. A segunda carta. É um guião, uma narração da acção, uma lembrança de que tudo aquilo não passava de peça de teatro. Não confio nas palavras. Continuei a olhar para a mulher à minha frente. Falo-lhe da pinga que se solta do alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas. Falo-lhe da casa que parece de papel. Sinto-me terrivelmente só, mas não digo. Apetece-me chorar, mas reprimo a lágrima. Não quero sair, aquela cadeira aqueceu a minha solidão.

- Posso apagar a luz?
Ela levanta-se e ajoelha-se à minha frente.
- Posso tirar-te o sapato?
“Ela baixa-se e com a mão rodeia-lhe o tornozelo. Tira-lhe o sapato. Ela não está espantada. Cala-se. Sabendo no entanto que alguma coisa deveria dizer. Passam trinta segundos”
- Posso tirar-te a meia?
Estava ensopada com a chuva, lágrimas, gotas luminosas suicidas, lamentos, mar, rio...
O pé gelado. Ela poisa o meu pé em cima da coxa dela, quente e nua. Sinto calor, sabe bem, muito bem...
- Posso tirar-te o outro sapato?
“ Tira-lhe o outro sapato. Depois levanta os olhos para ela. Não tem medo.”
- Posso dar-te a mão?
“Ficam ambas sentadas muito tempo de mãos dadas entre a mesa e a cadeira.
Ambas têm consciência do ridículo da posição.
Mas estão sérias e não ousam dizer palavra ou talvez sim.
Na casa reina o silêncio.
A vida de cada uma projecta as suas sombras em tudo.
Elas não se escutam senão a elas próprias.
Estão de mãos dadas, silenciosas e atemorizadas.
Cada uma procura socorrer-se da outra.
Sabendo que se se largam estão perdidas.
E também se não se largam perdidas estão.
E nesse momento tudo parece tão simples.”


- Posso dar-te um beijo?
Digo que sim, sem pensar, um beijo. Ela levanta-se e com um sorriso cúmplice aproxima-se dos meus lábios, tocando-lhes num beijo silencioso.
- Posso dar-te um abraço?
Dá-me um abraço forte, terrivelmente forte, uma abraço de despedida, um abraço de força vencida.
- Posso abrir a luz?
Dá-me a terceira carta e diz – Adeus.

“Ela olha para as mãos e pensa. Existe um vento impetuosamente solto na noite da minha vida. E tu amiga desconhecida, nesse lugar, sentes o vento impetuoso solto na noite da tua vida?”

“Aqui, eu abro as portas, corro e vou em direcção ao mar.
E tu? Corres, de braços abertos em direcção a ti?”

“Havia uma casa, havia uma noite. Havia uma mão e outra mão. Havia um instante. Lembras-te?
Olha. Um minuto.
Não te esqueças.”


Saí com a carta amarrotada dentro do bolso das calças. O frio do chão perfurava-me a alma. A gota solta do alto, topo, cimo, tecto, telhado, entre duas tábuas, folhas, camadas contraplacadas num chicotear firme e constante fundia-se com o bater do meu coração.

Terraço Lux, foi até 22 de Abril.
Mónica Calle, dramaturgia, Nadir Bonaccorso, arquitectura.“Um objecto, um interior, um percurso, fragmentos, um espectador e Mónica Calle.”

6 Comments:

Blogger Alexandre said...

...e eu a pensar que tinhas sido tu a escrever :(

Podias ter sido, sabias?

25 abril, 2006 17:13  
Blogger Lu said...

Só não escrevi as cartas, entre ""...

Foi ela que as escreveu!

26 abril, 2006 00:48  
Blogger anoeee said...

Que intensidade! Quem me dera ter ido também visitar a minha solidão...

26 abril, 2006 11:56  
Blogger Carlos Gouveia said...

Como é bom ler o que escreveste.

Sente-se...

27 abril, 2006 17:35  
Blogger Sofia Viseu said...

ui...

28 abril, 2006 09:15  
Anonymous Anónimo said...

I find some information here.

22 julho, 2006 19:55  

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